domingo, 29 de janeiro de 2017

Enegrecer



Por Raquel Gouveia 

Panteras Negras 

Sempre que corto o cabelo sinto o mundo de forma diferente, pois ele se torna ainda mais difícil. O peso dos meus cachos  simbolizam um embranquecimento que disfarça o peso do "racismo nosso" de cada dia. Ao cortar o cabelo para deixá-lo ainda mais crespo e assumir o meu lugar de mulher negra em uma sociedade machista, misógina e racista tornou-se uma escolha completamente difícil. Enegrecer me coloca em um lugar marginal e extremamente dolorido. 

O racismo é sutil na maioria das vezes, mas há momentos que ele despedaça a alma... 

Vejamos:

Minha mãe que é branca de olhos azuis torna-se minha patroa e eu sua "acompanhante"; Meu marido que é branco ao irmos ao shopping torna-se "minha garantia" de que serei bem atendida, pois ele aparenta ter dinheiro para pagar;

Sempre que vou ao cinema, ao teatro, ao museu e etc não localizo outras pessoas como eu, ou sejam pessoas negras. Somos poucos a termos acesso a esses lugares;Ao andar pelas ruas torno-me um sujeito que representa o medo, o perigo e a violência, pois minha negritude simboliza a marginalidade. As senhoras seguram as bolsas com tanta força que nem percebem que a minha mochila possui um valor financeiro maior do que elas transportam;

Ao pegar um Uber, o motorista sempre acha que é a outra mulher (branca) que o chamou e se assusta quando bato no vidro para poder entrar;Sempre que vou a farmácia da esquina para comprar algo, o segurança, que também é negro, fica me seguindo com os olhos para verificar se não estou roubando;Nas lojas quase nunca as vendedoras esperam que eu faça compras e quase nunca me atendem;

Ao frequentar festas quase sempre sou a única negra convidada e os demais negros são trabalhadores;

Quando subo a rua de casa tarde da noite acredito que posso ser assaltada e esqueço que a pessoa que está do outro lado da rua está apavorada e correndo de mim.
Posso ter doutorado, posso dar aula na universidade pública, posso ter acesso cultural, social, político e econômico, mas ao enegrecer nada disso importa. Posso andar cheirosa e com os melhores perfumes, posso ter estudado na Europa, posso falar dois ou três idiomas, posso publicar artigos e livros, posso ter ido a França, Inglaterra, Espanha, Holanda, Bélgica, Argentina e demais países quantas vezes eu quiser, posso continuar estudando, posso comprar roupas caras... Porém....

Sempre vão me lembrar e dizer que sou negra e que não posso estar ali. 
Até dizem que esse tal de racismo não existe, só que ao Enegrecer ainda mais, posso afirmar que o sinto cada vez mais forte todos os dias... Não sabia que o peso dos meus cachos significava tanto para a sociedade e que cortar o cabelo me aproximava de um povo que nunca me disseram que era meu. 

Apenas cortei o cabelo...

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