quinta-feira, 19 de julho de 2018

Roubaram até o nosso carnaval...






O azul é olhar do infinito
O branco é a paz no coração
Vermelho é a força de Ogum
senhor Ogum
O samba é a nossa tradição
São Jorge Iluminai nossa gente
Chegou a Mocidade Independente[1]

Elaine Santos no carnaval da escrevivência.

Morei 31 anos da minha vida em uma comunidade periférica de Santo André chamada Cidade São Jorge. Minha família foi uma das primeiras a ocupar aquele espaço, a primeira missa foi realizada na casa do meu avô, Salvador dos Santos, que, lutador do povo, abrigava presos políticos em sua casa no período ditatorial e atualmente leva o nome de uma escola secundária em Santo André. Foi na Cidade São Jorge que aprendi a me socializar enquanto mulher negra, onde, após formada dei aulas e vi meus alunos crescerem.


Imagem 1- Primeira missa do bairro realizada na Cidade São Jorge casa de Salvador dos Santos.
Em 1962 foi criada a SAB (Sociedade Amigos do Bairro da Cidade São Jorge) que era um local onde as pessoas podiam se reunir e discutir melhorias para o Bairro. Os melhoramentos demoraram a vir, muitos não chegaram até hoje, a exemplo da extensão de energia elétrica que ainda não contempla todos. Na época não tínhamos sequer uma escola para estudar, após, reivindicações se ergueu uma unidade escolar que chamamos “Grupo Escolar”. Tudo tinha um sentido coletivo e as denominações também levavam a este sentimento, algo que era de todos. 
A SAB não prosperou, desativada, só voltar a funcionar nove anos depois. O loteamento ao lado do nosso denominado “Centre Ville” foi ocupado de forma concomitante a Greve dos Metalúrgicos em 1978 e possuía muitas organizações representativas coletivas como demonstra o relato abaixo, era um exemplo de luta. Lutas que ainda prosperam, agora por meio das reclamações dos moradores (os nossos coirmãos no samba) a exemplo da escassez de transporte público no local, que conta com apenas uma linha, o conhecido I02 que para nós é quase uma viagem intraestatal todos os dias tamanha a demora e a lotação. Um dos depoimentos relata àquele momento em que as lutas floresciam


O que me marcava mais nestas reuniões era a emoção de ver todo aquele pessoal precisando de um teto decente pra morar e ter que tá pagando aluguel, ter que estar se virando em favelas. Então você no contato com essas pessoas…até hoje me arrepio todo quando falo. Essa emoção, aquela empolgação, te arrepiava todinho. Fora de série” – depoimento de Dimar Carlos Rosa, um dos ocupantes do Centreville[1].


Atualmente a Sociedade Amigos do Bairro ainda funciona em conjunto com a Quadra da Escola de Samba Mocidade Independente da Cidade São Jorge, como único lugar recreativo do bairro onde é possível a realização de desporto de forma gratuita, ter acesso as questões políticas como o “Orçamento Participativo da Cidade” além de ações sociais públicas como corte de cabelo e eventualmente tratamento odontológico comunitário. Associação que possui geminada a quadra onde são realizados os ensaios da escola de samba, também oferece aulas de dança, capoeira, pintura os valores cobrados são simbólicos, em muitos casos cobra-se menos que a passagem do ônibus lotado. Contudo em tempos... aulas de dança e qualquer tipo de lazer se tornou luxo só possível para quem possui altos salários e bons cargos. O bairro é conhecido por sua carência estrutural, material e também pela violência exacerbada e de todas as ordens.

Então é carnaval...

Parte das pessoas que vivem no bairro dedicam seus momentos livres no afinco de realizar um desfile de carnaval. Ainda me recordo quando criança todos saiam às ruas para ver o último ensaio da Mocidade Independente Cidade São Jorge, era a nossa escola!! Eu também desfilava, meus pais faziam a fantasia e minha Tia Sueli junto com meu Tio Laércio, que era o mestre-sala[1], me ensinavam o charme e a elegância que devíamos ter ao nos apresentar à nossa comunidade. A beleza que mostraríamos nas áreas centrais da cidade, onde muitos iam somente para torcer, apoiando aqueles que trabalharam o ano todo pensando uma elaboração da temática, nos ensaios, na costura, na colagem, etc.  As fantasias eram pagas com valor simbólico – muitos não pagavam -  e todos se embelezavam. Àquela seria a noite em que ninguém seria capaz de ofuscar o nosso brilho.
Desde de 2017 o prefeito resolveu cancelar o carnaval da Cidade de Santo André[1], o prefeito Paulinho Serra que foi um dos grandes aliados do PT, líder de metalúrgicos uns atrás, hoje pertence ao PSDB e é um dos maiores aliados de Eduardo Cunha[2]. Sob a justificativa de crise orçamentária o Carnaval 2017 e de 2018 foi cancelado. A ideia me pareceu um tanto equivocada, já não temos pão e nos tiraram também o circo, isto me faz lembrar que a “política do pão e do circo” sempre foi pensada para acalmar os ânimos daqueles que vivenciam o limite da desigualdade, mascarava o problema central.
Duque, como foi sempre chamado um dos batalhadores do nosso bairro e da comunidade disse

A única justificativa que o prefeito deu foi que, a prefeitura tinha outras prioridades...mas não disse quais seriam, sabemos que não seremos nós, nunca fomos prioridade.




Eduardo Carvalho e Renato SS, desde a infância na comunidade, também comentaram com tristeza a falta de tudo, inclusive do carnaval e ressaltaram o aumento da violência nos arredores. No jornal da cidade[1]  a presidente da liga das escolas de samba do ABCDM comentou

“Há discriminação forte com nossos costumes. Passamos o ano todo tentando conversar com os gestores, sem sucesso. A escola de samba paga costureiros, serralheiros, carnavalescos”, lamenta a presidente da Uesma (União das Escolas de Mauá) e da Liga das Ligas das Escolas de Samba do ABCDM, Meire Terezinha da Silva. Apesar da frustração, ela destaca que seguem as tratativas para viabilizar a festa no próximo ano”



Agora que ROUBARAM ATÉ O NOSSO CARNAVAL e como mencionei, há poucas coisas das quais podemos nos orgulhar no bairro a não ser a solidariedade. Frente a situação de precariedade total, a solidariedade acabará por se favorecer, mesmo na forma de rede voluntária, como sempre foi e ainda é a relação dos moradores.
Nosso imaginário é pouco imbuído de preconceitos, queremos viver melhor e a alegria é parte fulcral dessa nossa dura vida. Quiçá tais rebaixamentos e banalizações do que somos nos conscientize para uma transformação da insubordinação em um Grande Carnaval na rua da nossa comunidade em que a Comissão de Frente[1] abrirá novas lutas, não só pelo direito à diversão, mas pelo nosso direito à existência, a bateria, cadenciada por nosso mestre Charles entoará a batida da libertação e por meios das lutas travadas a cada dia ERGUEREMOS NOSSA CABEÇA!


Quadra da Mocidade Fonte - google 



[1] A comissão de frente surgiu nos desfiles das Grandes Sociedades, onde pessoas vestidas a rigor, em geral montadas a cavalo, vinham à frente dos carros alegóricos saudando o povo.




[1] O mestre sala e porta bandeira cumprem a função de apresentar a bandeira da escola durante o desfile.

[1] Disponível em









[1] O hino da Mocidade Independente da Cidade São Jorge

Elaine Santos, Socióloga e Doutoranda na Universidade de Coimbra – Portugal
Escrevivência é um conceito cunhado por Conceição Evaristo que denota a escrita como parte daquilo que vivemos e refletimos, uma escrita contaminada pela vivência de uma mulher negra.