quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A escrita e a reconexão


Sempre gostei de escrever. Lembro-me quando tinha sete anos, escrevi uma redação sobre o Natal. Não sei o que escrevi, mas lembro daquilo ter chamado tanta atenção dos professores que minha mãe foi chamada na escola para ser elogiada e não só, para estimular a leitura e a escrita em mim.

Não sei se por isso, ainda aos sete anos, ganhei um diário do meu pai. Ele trabalhava na fábrica Mercedes e voltava para casa de ônibus. Então, quando saiu do trabalho, desceu no centro da cidade e comprou aquele diário. O diário tinha um cadeado dourado com figurinhas e desenhos em uma capa azul, e ali eu escrevia e escrevia coisas da vida e da rotina na escola, como faço agora. O cadeado representava o “segredo”, a escrita pessoal que ninguém deveria acessar além de mim. Gosto de pensar que me respeitaram e que ainda aos sete anos eu poderia ter uma história que quisesse relatar, uma história infantil, mas que fosse minha.

E assim seguiu, todo ano ganhava um novo diário e fui escrevendo e escrevendo até os 14 anos. Guardei todos esses diários e pretendia lê-los neste momento, passados tantos anos e após o falecimento dos meus pais. Talvez uma tentativa de me reconectar com o que eu fui e que já não reconheço. Nos últimos anos, tive um hiato. Às vezes, me lembro de coisas e pergunto se elas realmente aconteceram. Acho que minha memória me engana. Daí me pergunto, afinal, o que foi minha vida, qual o sentido dela? Já li algumas vezes que o trauma subverte o registro da memória, com base nesta evidência individual posso dizer que talvez seja verdade. E por vezes percebo que sem meus pais fiquei sozinha, que tais perguntas sequer fazem sentido agora. Isto porque as nossas conversas eram sempre profundas, mesmo no raso que é o cotidiano.

Basta pensar! Só pessoas com tamanha sensibilidade estimulariam a escrita em mim ainda na infância. Porém, isso também foi parte da história deles. Nos últimos meses, encontrei um caderno dos meus pais. No caderno vi que ambos trocavam mensagens ao sair de casa, isto porque não se encontravam entre seus trabalhos, então era a forma que tinham de dividir a vida. Uma espécie de WhatsApp daquele período, muito menos volátil, ninguém apagava as mensagens, ninguém bloqueava um ao outro, a vida era mais crua e o enfrentamento das chateações das rotinas não era deletável.

Lendo suas mensagens, é interessante perceber o modo como viveram, eram muito especiais em suas pequenezas. O suco de abacate era anotado, meu pai adorava, isto também permaneceu em mim. Eu gosto de revisitar tudo, gosto de ter contato com a saudade e a dor de perceber que eles já não existem, e ter acesso àquela memória que construí com eles, compartilhada, está guardada apenas em mim. Muito privilégio o meu!

Escrever hoje me faz resgatar o que sou e o que fui antes, antes do trauma, e aos poucos ir relembrando as pequenas histórias e tentando encontrar pessoas que tenham também experienciado estas memórias. As fotos me ajudam, felizmente estas eu não perdi, os diários se foram com as mudanças em meio ao luto. Fico triste por não conseguir me rever e por isso também escrevo como forma de dar uma organização aos pensamentos.

Olhando meu entorno e vendo como sempre tive que enfrentar o REAL no seu pior e no seu melhor, percebo o porquê me incomoda tanto o falseamento da realidade. Eu quero saber o que se passa, quero viver efetiva e integralmente a alegria e a tristeza porque sei que só através destas contradições intensas conseguimos amadurecer, dar valor ao que de fato importa e é especial na vida e por isto também escrevo.

Tal como meus pais, eu quero ler, quero saber e me reencontrar e é daí que vem o registro; ele nos mostra como nos construímos e onde e com quem queremos estar. Por isso não me escondo do mundo, porque a vida está aí para todos e por mais clichê que pareça, teremos que enfrentar. E foi por meio dos registros deles que também descobri outros pais que eram confidentes entre si e que bom que puderam partilhar isto juntos.

O caderno foi um presente ao meu pai da empresa Bardella Indústria Mecânicas e é de 1964, ano do golpe, o relato na imagem é de 1976.