segunda-feira, 29 de julho de 2019

Contra a síndrome de Neandertal


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Bolsonaro é tratado, de modo quase unânime, como adversário. Ele próprio, diariamente, ao contrário, se aplica em ser inimigo.
Um transgressor de todos os limites de forma e conteúdo, feito um marginal, um delinquente. Um conquistador, chefe de tropa colonial, a destruir os quilombos e aldeias indígenas. Tem o estado do seu lado, polícias, exército, justiça. Persegue, prende, condena com e sem causa (mata, ainda que não diretamente).[1] Chefe de tropa do exército de ocupação, vai inchando o estado de exceção.[2] Fala sem nojo e pejo as coisas mais terríveis e desencontradas, diz e desdiz, faz barbaridades enquanto afirma fazer e não faz, com seu falar claudicante de caipira da zona atibaiense, espraiado por toda a baixada santista e Vale do Ribeira, zona produtiva e comercial, entre os séculos XVI e XVII, que abastecia de alimentos o Pernambuco colonial.
Um chefe huno, chefe de guerra, tratado por todo o público oficial e oficioso com desdém cerimonioso, como se fora amigo involuntário e tolerado. Amigo não, conviva do festim do capital, assentado nas quatro pernas de seu golpe dentro do golpe. Como? Uma fatalidade histórica.
Sim, afirmamos, golpe, movimento brusco e demolidor de relações sociais, uma revolução. Seus atores a proclamam. Os arquiduques milicianos e seu rei de guerra, capitão generalíssimo, devoto do astrólogo filosofante. O Grande Moro, juiz togado maior da mesa inquisitorial, maior mesmo que os juízes funcionários supremos, do tribunal máximo. Homem treinado nos escritórios gringos, elevado de caipira da província periférica ao doutorado em leis menores, sempre listas para atropelar os códigos oficiais, para o reinado das artes excepcionais. Os maiorais da tropa generalícia reservista, inativa, vetustos líderes já sem serventia, de nativos e gentios, lugares-tenente dos oficiais com mando ativo. Por fim, a tropilha obesa da nobreza argentária dos legisladores congressuais, de seus vários clubes poderosos – da bala, bola e da bula, da bíblia e dos bois, dos basbaques.
Quatro pés da mesa a comandar a revolução dos poderosos. Pés imperfeitos, a trançarem-se como se indecisos, cada um deles às voltas com seus problemas, seus dilemas existenciais. Entre eles há, porém, certa hierarquia, seja na condução da carruagem da revolução, ou das funções a desempenhar. Os passos trôpegos de cada uma delas enchem as páginas dos jornais e revistas, dos noticiários televisivos. Tropeçam, escorregam, se trançam, caem de joelhos sobre a grama do planalto ou o cimento polido e acarpetado dos palácios e ministérios. Se contradizem, disputam, entre si, a supremacia, mas seguem decididos o curso de sua obra transformadora.
Não há Brasil no cubículo onde se assentam ou nas cavernas onde revoam pequenos mamíferos noturnos. Seus horizontes não vão além do cerrado seco, esturricado, desértico. O figurante exemplar não concebe a vastidão do mundo, ou mesmo do país continental que lhe coube nascer. Odeia tudo o que vai além de suas ideias pré-concebidas, a bailar em torno dos grandes poderes. De modo que hoje podem ser assim, logo mais outras e assim por diante. Feito um colar de contas de diferentes cores. Sempre haverá outra e outra a servir para uma resposta. Nenhuma tem a mínima noção do que sejam as contas nacionais, o censo, o vasculhar do espaço terreno pelos satélites, o efeito estufa, a importância do cerrado ou da Amazônia, a estupidificacão nacional por via do porte quase irrestrito de armas e outras idiotices racistas, homofóbicas, a assediar a população estupefata com o jorro intermitente de seu vomitório, com as ameaças de perda de liberdades.
A sua noção de soberania não vai além da geografia, alienada para todo o sempre à bandeira gringa e seu boçal presidente, aos quais diariamente deve bater continência nas manhãs e tardinhas planaltinas. Ele chegou do mundo obscuro dos porões, das entranhas do Condor, mal tolera o sol, o carnaval, o ir e vir sem método dos civis, a incerta variedade do viver em sociedade. Mal tolera as leis, o congresso, mal sabe da economia do mundo e da política dela emergente, quanto mais a da pátria. Mal sabe que a economia política neoliberal é uma glorificação religiosa da morte, a negação do sentido original da disciplina, o da conquista da riqueza para a glória da nação, soberana sobre tudo e todos, sobre todo o planeta. A financeirização potenciada pela taxa nacional colossal de monopolização da estrutura econômica (e dos negócios e bancos, em particular), impõe à nação um veto criminoso à industrialização soberana (e à industrialização em geral) e à venda da força de trabalho, uma espécie de lock-out patronal contra a democracia, restringindo ainda mais os limites democráticos do regime do salariato, expandindo-se à ditadura de fato do grande capital financeiro. Dos trabalhadores, destituídos da legislação democrática, das leis da carta protetora que lhes garantia condições menos miseráveis de venda da sua força de trabalho, se exige serem transformados em objeto de ainda maior superexploração, para gáudio do capital, assim reconduzidos a uma escravidão salarial ainda mais terrível do que a vigente sob a contrarrevolução até a abertura democrática. O capitalismo da miséria se miserabiliza exponencialmente.

Fonte - google 

Para ele o Brasil será isso, um protetorado wasp, uma Irlanda evangélica montada no cavalo dócil dos cristãos católicos e outras religiões não cristãs, de etnias cristianizadas à força, expressão da desumanidade cristã exclusiva para o capital, da floresta tropical devastada, da miséria escravocrata a servir os delinquentes de todas as castas congressuais.[3]
Escravo da sua pequenez, no seu espelho vendo-se gigante imbatível, nos arrasta ao cadafalso da história, como vítimas, para susto e escárnio dos que navegam a velas enfunadas rumo ao futuro, em sentido contrário ao nosso. Assim damos adeus definitivo ao nosso antigo futuro glorioso, antevisto no hino nacional da República. Deixamos de ser simplesmente o que éramos para não sermos mais nada. Retornamos ao nosso novo nada original, entregues à nossa nova humanidade penta secular, pronta para uma nova jornada. Escravos, assim, de nossa abismal ignorância de si, de nossas fantásticas possibilidades, enquanto livres, soberanos, que nos arrasta pontual, metódica e cronicamente à rica miséria de seus potentados, à miséria miserável de seus trabalhadores, de seu povo.
Porta-se como um delegado de costumes enviado para impor ordem, de rebenque em punho, pronto a dissolver a balbúrdia e as ideias erradas, a trancafiar-nos, a nos colocar de castigo no armário e nos deixar cheios de medo e terror. É personagem funcional aos desígnios neocoloniais das burguesias nativas, alegres e emocionadas (às lágrimas quando da aprovação da primeira etapa da reforma da Previdência) a proceder ao desmanche da nação, transformando-a em novo protetorado norte-americano, uma nova Irlanda pentecostal gringa, a empurrar a nação ao nada de sua nova e radical transição neocolonial, diluída em ácido sulfúrico.[4]
Estamos diante de um inimigo que se delicia em declarar-se devoto de interesses minoritários e de um universo ideológico colonial, antidemocrático, escravagista, portanto antinacional, antipopular, anti-assalariados em geral. Inimigo vassalo de potência estrangeira em declínio e estertorando sob a férula de um celerado de ultradireita decidido a reverter o rumo da história por meio de estratégia geopolítica de guerra contra as potências emergentes.[5] É o personagem providencial do capital, contra o qual se deve construir a força social votada à sua derrota. Deve ser tratado como tal e não como o adversário que amanhã será derrotado em improváveis futuras eleições a serem ganhas pelas mesmas forças cujos equívocos teórico-práticos nos conduziram a esta revolução dentro da contrarrevolução de 1964, da qual ainda não saímos e da qual eles não tiveram nem tem ainda consciência, supondo até agora, desde 1985, havermos entrado definitivamente na democracia.
Ele recém chegou do baixo Vale, do território neocolonial da miséria do Vale do Ribeira. Seu presente é nosso passado. Ele não aspira regredir à colônia, simplesmente quer voltar para casa.
O Brasil de 1500 acabou. O novo Brasil, o da segunda independência, radical e popular, começa a sua marcha hesitante. Precisa ocupar as ruas, as revistas e os livros, os corações e mentes dos humilhados e ofendidos pela nova ordem. A opção neandertal é suicida. Decididos a não acompanhar os seus parentes sapiens-sapiens, se deixaram ficar tranquilamente em suas cavernas, acompanhados de suas famílias. Foram encontrados recentemente pelos mergulhadores arqueoólogos-espeleólogos, nas grutas profundas, dezenas de metros sob o mar, nas encostas mediterrâneas, juntinhos em sua morte coletiva.
São Paulo, 27 de julho de 2019.

Paulo Alves de Lima Filho

                        (Coordenador do IBEC; Comunistas pela Unidade da classe trabalhadora)