Hoje faz anos que meu pai faleceu, não direi quantos anos, porque me recuso a pensar que o tempo passou e a dor não.
É um dia que carrego comigo, cheio de detalhes que ainda consigo lembrar, mesmo que, no trauma, tenhamos perdido a capacidade de reter tudo com clareza. Meu irmão não se lembra de muitos aspectos, então cabe a mim relembrá-lo. Foi um dia triste, mas já esperado. Ele estava doente há tempos, e sua partida, embora dolorosa, parecia inevitável.
Lembro de como minha mãe sentia a aproximação da morte dele. Pela ligação profunda que tinham, ela percebia, dia após dia, que ele ia partir. Cada toque do telefone nos deixava em suspense, esperando uma notícia ruim. Era uma angústia constante.
Meu pai, aquele homem inteligente, de letra bonita, começou a mudar. Lembro do seu adoecimento, de como ele foi definhando aos poucos, de como o perdíamos fragmento por fragmento. Ele começou a esquecer das coisas, fazia perguntas sem sentido, tinha ações confusas e estranhas. Havia um desleixo consigo mesmo, uma espécie de desistência. E quando desistimos de nós, nos corroemos mais rápido. A vida passa depressa, e o sofrimento excessivo parece acelerar o tempo. Tenho a sensação de que envelheci muito desde então, como se sua morte tivesse aberto em mim uma consciência de uma vida vivida em poucas horas.
Numa tentativa de reconstruir as memórias que perdi, sempre busco as coisas que escrevi sobre ele. A escrita sempre foi minha companheira, desde pequena. Foi meu pai quem, aos sete anos, me deu um diário com cadeado e capa azul, onde eu registrava minha rotina e meus segredos infantis. Guardei aqueles diários por anos, mas os perdi com as mudanças constantes — de uma casa para outra, de um país para outro. E depois que meu pai faleceu, minha mãe também partiu. Ficamos sozinhos, meu irmão e eu. Tínhamos que nos mudar para uma casa menor. Tantas coisas. Tantas memórias. Tínhamos que dividir, guardar em diferentes locais. E assim, as coisas foram se perdendo. Também as memórias
Tal como a memória, eles se foram. Talvez por isso eu escreva tanto agora: numa ânsia de recuperar o que perdi, de fugir da solidão da alma que sinto. Mesmo em tempos em que estava cercada de gente, ainda me sentia sozinha.
Quando ele faleceu, escrevi isto:
"Hoje, vivendo a orfandade, sei que tenho os amigos que me cercam nesta luta que é grande. Em um momento em que a conjuntura nos massacra, também é hora de nos fortalecermos entre e com os nossos."
E nos dias em que as aflições parecem não ter fim, percebemos que, por mais difícil que pareça, continuar é necessário. A vida sempre vem em nosso socorro com todas as suas ninharias habituais, suas restrições, suas pequenas alegrias. Aos poucos, vamos despertando para novas sensibilidades e assim seguimos.
E nos dias em que as aflições parecem não ter fim, percebemos que, por mais difícil que pareça, continuar é necessário. A vida sempre vem em nosso socorro com todas as suas ninharias habituais, suas restrições, suas pequenas alegrias. Aos poucos, vamos despertando para novas sensibilidades e assim seguimos.
Vivendo.
Nos apoiando naqueles que são nossos referenciais de potencial humano: os amigos, as leituras...
Indivíduos que nos rodeiam, que nos talham e que também nos salvam. No empenho cotidiano e mútuo em estabelecer relações mais humanas, são eles que nos dão forças e nos encorajam a seguir."
Um mês apos a sua morte escrevi para uma amiga:
"Não voltamos à normalidade aqui em casa ainda. Meu pai ainda se faz presente de forma bastante triste. Já faz um mês que ele se foi, e chorei muito esses dias porque penso que perdi um amigo. Faz falta nossas conversas. Hoje fez um mês que meu pai faleceu, e eu queria muito ter alguém para chorar e dividir a tristeza, mas todos estão com suas dificuldades. Então, eu escrevo, às vezes ligo, vou tentando amenizar esta dor que, talvez, seja até incompreensível para alguns. Inclusive, estou chorando enquanto escrevo aqui. E também não quero incomodar minha mãe toda vez que falo, porque ela chora, então evito"
Na época, eu realizava um projeto na escola sobre os 50 anos da ditadura militar. Era uma atividade de quatro dias, com filme e café coletivo, para reforçarmos nossos valores coletivos de luta. No segundo dia do projeto, meu pai faleceu, e a atividade não se concretizou. Lembro da diretora, no final do ano, ter elogiado meu esforço em realizar o projeto, mesmo sem concluí-lo. Aquela interrupção foi mais um reflexo de como sua partida afetou tudo ao meu redor.
Hoje, ao lembrar dele, sinto a ausência como um peso e, ao mesmo tempo, como uma força que me impulsiona a continuar escrevendo, vivendo, buscando sentido. A morte dele me deixou com uma mistura de saudade, dor e gratidão pelos momentos que compartilhamos. E assim, seguimos.
E passados tantos anos ainda me sinto igual, as vezes esqueço da tristeza, mas ela sempre volta, diariamente e não há um dia que eu não me lembre.
A normalidade nunca voltou.