segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Adélia Prado – Poema esquisito

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.

Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.

Ninguém tem culpa.

Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,

não existe mais o modo

de eles terem seus olhos sobre mim.

Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?

É dentro de mim que eles estão.

Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.

Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,

que abunda nos cemitérios.

Quem plantou foi o vento, a água da chuva.

Quem vai matar é o sol.

Passou finados não fui lá, aniversário também não.

Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?

É de tanto lembrá-los que eu não vou.

Ôôôô pai

Ôôôô mãe

Dentro de mim eles respondem

tenazes e duros,

porque o zelo do espírito é sem meiguices:

Ôôôôi fia.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Quando se aprende muito cedo a abrir as asas da alma

 

Hoje faz nove anos que ela se foi. 
Ainda lembro de tudo, naquela sequência de dias tristes que me levaram a encontrar o mais profundo sentimento de perda. 
Eu já estava psiquicamente debilitada por ter perdido meu pai meses antes. 
É estranho perder os pais tão jovem e em tão curto espaço de tempo. 
Parece que a vida está a nos perseguir. Mas, depois, lembramos que há muito sofrimento no mundo, e que o nosso não é o único. Ainda assim, nosso sentimento egoísta insiste em acreditar que a dor que carregamos é maior, ou mais única.

Sempre penso em algo que aprendi com a Isildinha nesses anos:  "Olha sempre para o lado, olha para baixo, e perceba que há muito mais além de nós neste mundo."  

Voltando àquele dia…
lembro que foram incontáveis horas de tristeza contínua e distante. 
Mesmo agora, nove anos depois, tento sempre reprimir o choro para seguir e até para escrever.
Aliás, minha mãe sempre dizia: "Quem chora muito envelhece rápido."

Naquele dia, porém, não consegui reprimir o choro. Mas ele demorou a vir. Acho que fiquei em choque por alguns minutos.
Lembro de estar em um café e de ter que sair abruptamente, para a certa confusão da pessoa que me atendia.  Como pode alguém pedir um café, pagar, não tomá-lo e ir embora sozinha, apressada, como se tivesse recebido uma notícia ruim?  

Sem deixar que ela me alcançasse, fui embora. 
Pensei que ela seria incapaz de me entender e posso ter me enganado, às vezes o apoio vem de onde menos esperamos.

Com medo, me escondi em casa, sozinha. 
Mandei uma mensagem para o Bruno, que estava na aula. 
Não sei por que não fui à aula. Talvez porque já não aguentava o peso daqueles últimos dias. Meu corpo dava sinais disso: alergias inexplicáveis, médicos receitando calmantes, enxergando um sintoma, mas não a dor.  Coisas que também aprendi com o sofrimento, o corpo sempre dá alguns sinais. 

Foram dias longos.
O Bruno se assustou com minha mensagem e veio logo.
Mas ele também não sabia bem como agir.  

O Bruno, meu grande amigo, sempre viveu protegido da vida.
Cresceu numa bolha segura, sem contato com os extremos da existência, fossem eles na euforia ou no luto.
Sorte a dele…
Viveu num certo equilíbrio, até que, depois, começou a descobrir seu verdadeiro eu.  Mas essa história bonita, que ele está a tentar construir, ainda precisa ser contada. Talvez um dia eu a escreva, se ele me permitir.  

De todo modo, foi ele que esteve ao meu lado naquele momento, junto com a amiga Paula.  

A ela, devo muito. Não uma dívida financeira ou uma obrigação.
Mas algo mais profundo: uma dívida de encontros humanos.
Daqueles que nos fazem lembrar que ainda há beleza e humanidade entre as pessoas.

Sentimentos que ultrapassam as pequenezas do cotidiano.  

Isso, hoje, é raro. 
Andando pelas ruas hoje, observo as pessoas.
Sempre penso que, a cada dia, suportamos menos, ouvimos menos.
Todos querem apenas falar, e falam tanto que nem percebem, sequer enxergam os outros.  

O egoísmo exacerbado, como dizia a Izildinha. Sábia, alguém que sabe viver e viver bem.  

Foram Bruno e Paula que me acolheram de imediato.
Aos poucos, outros amigos apareceram.
Não todos, claro.
É assim que funciona.
Quando sofremos, as pessoas se afastam.
É natural. Ninguém quer contato com a dor.
É mais fácil fingir, viver na ilusão de uma alegria constante.

Bruno hoje sabe bem disso. 
Às vezes, a vida dá reviravoltas muito grandes, e aprendemos a respeitá-la.
A viver com cautela. Nunca sabemos o que virá.  

Este texto está confuso, eu sei.
Mas é sempre assim quando escrevo sobre esse período. 
Como sempre digo, o trauma cria um hiato na memória.
E, ao escrever, tento organizar esse vazio.

Naquele momento minha consciência ficou desprotegida, e então deixei de conseguir produzir significado para o que vivi e para o para o que viveria anos depois, me tornei distímica.  

Até hoje, tento reconstruí-lo. Produzir sentido para o que deixou de ter.  

No choque ou sofremos, ou assimilamos. Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Talvez por isso, tudo ainda pareça tão real. 

Parece que todos os anos preciso voltar àquele dia, reorganizá-lo.  

Naquele 13 de novembro, me escondi.
Aos poucos, fui saindo.
Não foi fácil. Demorou anos.  

Alguns talvez não entendam o que foi isso.
Tudo bem. Não os condeno.
É sempre mais fácil lidar com a superfície. O profundo dói demais.

Mas ainda existia vida dentro de mim.
Fui capaz de agradecer ao médico que, com dignidade, continuou cuidando da minha mãe.
Ele nem sequer trabalhava naquele hospital.
Um gesto nobre, algo que apenas os médicos verdadeiramente humanos são capazes de fazer.
Lembro de ter ido até ele, um mês depois, apenas para agradecer. Ele chorou…


Lembro também da culpa que o professor Sinclair carregava.
Foi ele quem me incentivou a estudar fora.
E, como toda escolha implica renúncias, perdi os últimos momentos com minha mãe.
Quem poderia imaginar?

Hoje estamos aqui; amanhã, talvez não.

Fiz questão de dizer a ele (in memoriam) que aquela culpa não era dele.
Nem minha. Nem de ninguém.

A vida não é uma linha reta.

Nos últimos anos, sempre que essa data chegava, eu fazia um pequeno ritual:
levava uma flor ao rio.
Um gesto de despedida contínua.

Mas, recentemente, parei.
Percebi que, apesar da distância e do fim, ainda converso em consciência com minha mãe.
E, também, com meu pai, embora ele, sempre calado, apenas me observe.

Hoje escrevi duas páginas em dez minutos.
A depressão, por vezes, é criativa.

Mas, mais do que isso, quando reencontro minha dor, também reencontro minha força.
Percebo que tanta coisa é banal e eu não quero dar importância.
E aprendo a viver melhor, a dar valor ao que realmente importa.

Como dizia Belchior:
“Amar e mudar as coisas me interessam mais.”

Por isso, este relato se chama "Quando se aprende muito cedo a abrir as asas da alma."
Quando alguns laços se rompem, precisamos nos abrir de novo e encontrar outros laços.
Muitos não fazem isso.
Porque requer coragem.





sábado, 19 de outubro de 2024

2015: O fim e o início


Depois do medo, vem o mundo - Clarice Lispector


Tal qual foi minha surpresa ao ver que a nova sala tinha o número 2015, e imediatamente me remeteu a esse ano...

Talvez o mais difícil da minha vida, se 2014 não tivesse sido tão ruim. 

Mas não sei... O processo com o falecimento do meu pai foi aos poucos, como se estivéssemos nos despedindo dele ainda em vida. Já com minha mãe, foi uma perda abrupta, um tipo de choque que paralisa. Lembro desse sentimento, apesar de ter um hiato na memória... Lembro da minha reação.

Como assim a gente nunca mais iria se olhar? Minha mãe tinha uma coisa com o olhar, com seus olhos azuis... Expressava, além do céu, todos os sentimentos dela. A gente se entendia só por isso.

Voltando àquele número na sala, pensei no fim e no recomeço da vida. O mesmo ano, cujo número traz de volta um trauma, também me fez lembrar do início de algo. Talvez um aviso mental pra mim mesmo, visto que essa experiência é só minha, de que a cada dia a gente tem que recomeçar em meio a tudo. 

E foi assim que consegui superar tudo nesses últimos anos.

terça-feira, 30 de julho de 2024

educação, memórias e a era digital

Olhando este blog que comecei em 2010, quando ainda dava aulas, minha intenção era ajudar os alunos, que na época tinham pouco contato e habilidade com atividades em modo EAD, a se organizarem para realizar algumas atividades de estudo online. Foi uma forma que encontrei de aprofundar os conteúdos de sociologia, que naquela época só tinha uma ou duas aulas por semana, dependendo da série do ensino médio.

Mal sabia o que viria. Hoje, a sociologia está ainda mais desvalorizada e, ao mesmo tempo, tudo se faz pela internet, e pouco se faz em sala de aula, até pela precariedade existente.

O fato é que estava reparando que nos anos de 2014 e 2015 não postei absolutamente nada aqui, o que é muito compreensível, visto que esses foram os anos mais difíceis para mim. Tive que conviver com a ausência dos meus pais e, ao mesmo tempo, me organizar em outro lugar. Foi como se a minha história até aquele ano tivesse acabado.

Junto com meu irmão, saímos de casa e tivemos que doar grande parte das coisas do meu pai e da minha mãe. Tomei a consciência da finitude de uma maneira muito brutal, onde tudo acaba e ficam somente as memórias, essas que muitas vezes representam um hiato na nossa história.

Tendo consciência da finitude, passei a colocar aqui mesmo textos inacabados, e o blog foi tomando outro sentido, para além da educação. E não tem problema, sempre pode ser útil a alguém. Não sei...nos últimos meses me dei conta que tudo pode acabar a qualquer momento e escrever também é uma forma de deixar algo, ainda que seja uma reflexão. 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Sete breves lições de física: uma reflexão da periferia


Este texto é parte de uma dívida grandiosa que tenho com meus amigos, uma vez que somos parte daquilo que nos rodeia. Resolvi redigi-lo a partir da proximidade e do agradecimento que tenho a duas pessoas muito especiais. Dete, amiga de infância, na época do pré-vestibular, me recordo como se fosse hoje. Ela não sabia bem o que fazer, já que trabalhávamos, e fazer uma faculdade nunca foi uma questão a ser pensada com a seriedade devida. Estudou, tornou-se física nuclear, um orgulho para mim. Mulher, periférica e física, isso não é pouca coisa. No meu entender, a partir das nossas dificuldades concretas da periferia em sua luta pelos estudos, valoro-a como se fosse o Einstein do nosso bairro. Dete gostava dos números, era muito ágil, pensamentos rápidos, diferentes de mim, que demorava porque estava sempre questionando os porquês.

A outra amiga fundamental desta escrita é Aline Leme, amiga do bairro, do lugar periférico, com os mesmos vícios que nos atravessam na Cidade São Jorge. Falamos hoje ainda do nosso cansaço generalizado por termos construído um caminho em meio a tantas pedras. Hoje as coisas parecem mais fáceis e tudo parece mais próximo; naquela época, tudo parecia muito distante. Estudar era algo como luz no final do túnel. Aline estudou na Universidade Pública mais elitista de São Paulo, um esforço hercúleo desde a distância até a sua permanência de pertencimento no lugar que nunca foi nosso. Ela é a pessoa mais apaixonada pelas fórmulas que conheço. Como poucos, consegue sonhar por meio de números e transformar sua paixão em aulas de matemática que são espetáculos, como merece o nosso povo. Ela é matemática, mas para mim compara-se a Max Planck, o físico, um pilar na física do século XX. Planck, ao calcular o campo elétrico no interior de uma caixa quente, destoou de tudo que se conhecia na época, quando a energia era tratada de maneira contínua. Estranhavam a visão de Planck na concepção da energia como pequenos tijolos (Rovelli, 2016:20).

Aline é como Planck, alguém que destoa do seu pequeno mundo, entretanto, quer crescer. É Einstein que vai, cinco anos depois da hipótese de Planck, comprovar os "pacotes de energia", escrevendo que a energia de um raio de luz não se distribui de maneira contínua no espaço, mas consiste em um número finito de "quanta" de energia que se movem, não se dividem e são produzidos e absorvidos como unidades singulares (Rovelli, 2016, 21). Na mecânica quântica, nenhuma partícula tem uma posição definida, a não ser quando colide com algo. Quando acontece a colisão, não é possível prever seus saltos, que são ao acaso; há probabilidades, mas não uma certeza, e a incerteza está no coração da física (Rovelli, 2016: 24). Para nós, faz muito sentido transpor as incertezas da física e a nossa colisão com o mundo que vivíamos e que vivemos. Nos rebelamos desde cedo, ainda o fazemos, e somos improváveis em nossos caminhos. Recorremos à coragem de ocupar o não ocupado, de pensar o não pensado, e de voltar ao nosso estatuto, sempre com o orgulho devoluto ao nosso povo.

São estes dois pilares, Aline e Dete, que me colocaram no caminho dos números e das Ciências Naturais. Como socióloga, sempre gostei, mas pude ir além, nos sonhos atravessados das amigas de infância, ir buscar as fórmulas, suas deduções, enquanto alguns estranham até hoje minha paixão pela física. Parte deste amor agora se explica. Somos seres sociais; são os amigos que nos talham e a ciência nos revela como compreender melhor o mundo, indicando a imensidão que ainda desconhecemos. O conhecimento é nossa busca insana, capaz de nos dar outras possibilidades de mundo e de vida... À medida que nosso conhecimento cresceu, fomos aprendendo cada vez mais esta noção de sermos parte, e pequena parte, do universo (Rovelli, 2016). Segundo os grandes físicos, o presente é algo que escoa, ele não é comum a todos. Então, registrar é um ato de existência. Até o fim, o desejo de entender sempre mais... (Rovelli, 2016).

Posto isto, resolvi ler "Sete Breves Lições de Física" como uma tentativa de buscar livros acessíveis para os alunos, os jovens, aqueles também apaixonados pelos números, mas que encontram poucos referenciais. O livro é ótimo, didático, e adentra conosco lentamente a conhecer as dúvidas entre os cientistas mais renomados do seu tempo, entre o pensar e o agir, alguns encarados inicialmente como tolos e que muitas vezes tiveram que retroceder e recuar em seu ideário inicial. 

O pensamento científico é nutrido pela capacidade de ver além, "diferente", e não simplesmente pela mera reprodução do mesmo, como uma fotografia que revela o instantâneo, mas sim pela percepção do que não é visível na imediaticidade, aquilo que não aparece aos olhares pouco sensíveis. A contradição entre Einstein e Planck são as duas vozes infindas do século XX; a relatividade geral e a mecânica quântica são duas formas diferentes de ver o universo. O mundo é um espaço curvo onde tudo é contínuo; o mundo é um espaço plano onde pululam "quantas" de energia, e a ciência se torna cada vez mais majestosa porque se encontra frente a dois conceitos geniais, e se pode pensar a partir dos caminhos já traçados e abandonados, esforçando-se para reunir a inspiração enquanto ainda existe bruma, e podemos interagir com todas estas variáveis para pensar o novo (Rovelli, 2016:50). Nós, na periferia, somos como elétrons em nossos lugares; às vezes saltamos e nos transformamos em átomos, deixando um legado para que outros nos sigam.





sexta-feira, 21 de junho de 2024

sobre a solidão e a desilusão


Nos dias em que queremos ficar sozinhas, uma zona cinza nos arrasta para todo tipo de pensamento ruim. As palavras se confundem, os pensamentos não se concretizam e, quando o fazem, é sempre para a desistência. Besteira para alguns, desânimo para outros. Talvez seja melhor não explicar e evitar a fadiga de ter que organizar o que não é possível. E quando tentamos escapar, ainda que no pensamento, fecha-se um ciclo entre tristeza, frustração, auto-ódio e desistência.

No auto-ódio, me questiono sobre minhas escolhas. Poderia tudo estar e ser diferente — poderia? Já não sei, parece-me que não, quando tudo está cerrado.

Lembro quando jovem gostava de ler Thomas Mann. Passava horas me encontrando naquela literatura triste de contos que falavam da desilusão: “Sabe, meu caro senhor, o que é a desilusão?”, perguntou, num tom baixo e apressado, agarrando a bengala com ambas as mãos. “Não o mau êxito em pequenos assuntos insignificantes, mas a desilusão grande, geral, que engloba tudo, tudo o que faz parte da vida? Não, claro, não sabe. Mas eu tenho sido acompanhado por ela desde a juventude; ela tornou-me solitário, infeliz e, não o nego, um pouco excêntrico.” Ele conseguia escrever o modo como eu me sentia e ainda me sinto.

Em tempos ainda mais difíceis, escrever sempre ajudava. Nas frases soltas, encontrava alguma linearidade, algum sentido naqueles pensamentos confusos. A terapia me ajudava a tentar buscar a causa, ao invés de inventar mentalmente outras causas. O que efetivamente estaria me incomodando? Como mudar? Algumas vezes encontrei uma resposta, em outras tentei e tentei. Daí os dias passaram, e aquilo que parecia uma nuvem cinza foi sendo levada pela brisa dos dias.
Algumas vezes escrevi de forma aleatória e pensava: o tempo vai passar, um dia vou ler isto e perceber que efetivamente não estava bem. Porém, acabei perdendo tudo, e aquilo se tornou uma memória que agora já nem sei se efetivamente vivi.

Estar longe tem suas questões, mas não me refiro a longe do país, mas sim da realidade. Poucos entenderiam o que realmente isto significa. Em todo caso, também não me interessa explicar; as pessoas não nos veem no que somos verdadeiramente. Em tempos de redes sociais, isso fica efetivamente pior. Tudo está sempre no âmbito da aparência. É tudo mentira. Eu mesma não acredito em nada. Custa acreditar que a maioria vive aquela felicidade que propagam. Se efetivamente vivessem isso, bastaria. Não seria necessário mostrar, como se precisassem — e, de fato, precisam — da validação de outros.

Daí tento recordar qualquer coisa positiva do antes. Qual antes? Antes da consciência de que sou uma pessoa tristemente doente. Um dia desses me perguntaram sobre a distância e o quanto isto poderia levar à tristeza. Não acho que seja bem assim. Há tempos aprendi a estar sozinha, experimentando o abismo de distâncias em todos os níveis, seja por conta do distanciamento, da não identificação, da ausência de partilha de histórias em comuns, da ausência de aproximação de um mundo comum. Alguns elos frágeis me unem a outras pessoas. São ligações como teias de aranha que podem se desfazer a qualquer momento. E foi assim que experimentei a solidão.



terça-feira, 18 de junho de 2024

a necessidade de esperança e a luta por mudanças na América Latina


Quando lembramos do enterro de Getúlio Vargas, aquela multidão de pessoas querendo tocar no caixão (sim, temos história e ela segue se repetindo como tragédia/farsa), entendemos parte da necessidade de ter esperança em algo que altere minimamente nossa vida pautada no trabalho e no presentismo.

Aqui, não estou discutindo as políticas do “Getulismo” — podemos fazer isso em outro momento — mas sim o que essas lideranças representam para o povo. Meus pais, por exemplo, chamavam Vargas de "pai dos pobres". Isto não é uma especificidade nossa; todos os países da América Latina tiveram o seu "salvador".

A figura do salvador na América Latina reflete nossa dependência econômica, a forma como sofremos na sobrevivência, e a necessidade de ter um "alento". E SIM, eu estou comemorando também — ninguém vai tirar isso de mim. Porém, é importante lembrar que, historicamente, todas as figuras personificadas na liderança vieram como tentativas de criar consenso, ou seja, abafar o grito desesperado de um povo em crise que poderia ser sujeito, mas que, sem forças, coloca em alguém (outro) seus anseios.

Vargas no Brasil e Perón na Argentina, por exemplo, implementaram uma série de regulamentações trabalhistas como mecanismos de contenção dos trabalhadores. Essas regulamentações obviamente ajudaram o trabalhador, mas acabaram por abafar suas lutas, dando como vitória somente a legislação. O chamado progressismo da última década também surge nesse ideário. A população, descontente com as reformas neoliberais impostas, segue sofrendo e busca uma alternativa desesperada. Assim, muitos governos ditos de esquerda ganham as eleições em vários países.

Todos esses governos implementaram políticas voltadas à transferência de renda às famílias, com base nos objetivos de desenvolvimento do Milênio e no cumprimento de uma das sanções da Organização das Nações Unidas iniciada no ano de 2000, para erradicação da pobreza como item prioritário. SIM! Importa diminuir a pobreza, porém precisamos avançar na questão central, que não é apenas redistribuição de renda, mas sim, o que gera a vergonhosa pobreza.

Nenhum dos governos progressistas na América Latina, respeitada a importância de suas reformas, conseguiu qualquer controle ou reversão do capital financeiro, principalmente sob a égide da marcha célere imperial hegemônica. Ao contrário, fomos parceiros na nossa condição de subalternidade, na nossa posição mais ou menos crítica, mais ou menos de esquerda. Sabemos que a história não dá passos atrás — "el pasado no volverá". Só para dizer que precisamos criar um estatuto nacional autêntico.

Este pequeno texto abre espaço para uma série de outras reflexões, mas não podemos abandonar a luta por um novo ser humano, na sociedade que queremos e que deixaremos. Entender a especificidade da situação latino-americana e os nossos problemas não é uma tarefa simples. E me recuso a acreditar que estamos condenados. Quando as cortinas se levantam, percebemos como os fios da trama estavam sendo tecidos. Aproveitemos este momento. O que definirá as mudanças é nosso amadurecimento daqui para frente. 

Perdoem a vulgarização dos conceitos.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Dona Finota: a vida e legado

Ivone Teixeira dos Santos, a “Dona Finota”

Minha avó, uma mulher serena.

A iniciativa de escrever sobre minha avó Ivone foi para mim um desafio, afinal tivemos muitos momentos juntas e depois nos separamos drasticamente. Contar a nossa história pessoal, ainda mais quando nos acostumamos a nunca pensar sobre isso, é também recuperar nosso histórico no passado, um pouco de nós que ficou naquele tempo de convivência. 

Uma das minhas avós, Ivone, ou Dona Finota, como ficou conhecida, será a pessoa que resolvi relatar, ampliar esta experiência e fazer desta mulher que passou a vida à sombra, uma mulher histórica. Dona Ivone foi uma mulher racializada, que criou sete filhos e viu alguns deles falecer antes de si. Esta não é uma história inventada; quem inventa é a vida, parafraseando Gabriel García Márquez. Viver é algo bastante notável, há que se pensar sobre a vida, e tudo que a compõe é digno de registro, simplesmente porque nos diz respeito. Assim sendo, Dona Ivone, uma mulher descendente de indígenas e africanos, teve uma história apagada pela violência colonizadora da formação brasileira. Contudo, este texto dará dignidade a esta vida. 

Dona Finota era uma avó muito afável; morei com ela até os 19 anos, quando meu pai, por rompimentos familiares, resolveu se afastar. Num Brasil com passado escravocrata, sei pouco sobre seus antepassados, mas quando vivemos juntas, ela era a avó religiosa que acordava às 6 da manhã para fazer suas orações e sempre foi muito querida comigo e com meus irmãos. Recordo-me de alguns dos seus trejeitos: ela nos enchia de coisas para comer e depois reclamava que havíamos comido tudo, numa reclamação estendida a todos da família. Em sua vida, ficou conhecida como a esposa do Salvador dos Santos, meu avô, já que ela sempre esteve ao seu lado nas lutas comunistas que meu avô travou e que deixou marcas em todos que o conheceram. Como consta no artigo publicado no Jornal Andreense Diário do Grande ABC
"Dona Finota (apelido carinhoso de Dona Ivone, dos tempos de Minas), mulher de Salvador, acompanhou-o e o apoiou em todas as atividades desde o nascimento. A matriarca faleceu em Santo André em 30 de abril de 1966." (1)

Contudo, o jornal cometeu dois erros. O primeiro foi que ela não era apenas a esposa do meu avô; ela foi uma mulher que sobreviveu nesta sociedade. Em tempo, foi chamada de louca; quiçá havia mesmo enlouquecido com seu próprio silenciamento forçado. O segundo erro foi o ano de sua morte; ela viveu muitos anos mais, morrendo em 22/02/2009. Viveu para ver o hospital carregar o nome de uma das filhas em sua luta feminista. Na nota do seu falecimento, o jornal noticiou que Santo André perdia uma filha querida.


Dona Ivone era viúva de Salvador dos Santos, pioneiro da Vila Humaitá, participante ativo da igreja do bairro, do clube, da sociedade amigos e nome do centro recreativo e assistencial do bairro. O casal teve sete filhos: Maria José (nome do Hospital da Mulher), Josefina, Lurdes, Joaquim (ex-vereador e presidente da Câmara Municipal, editor do Almanaque de Vereadores, 1ª edição), Salvador Filho (bibliotecário e agente cultural), José e Ana Aparecida. Dona Ivone era natural de Campo Belo, em Minas Gerais, nascida em 8 de junho de 1923. Faleceu quinta-feira e foi sepultada sexta-feira no cemitério de Vila Pires. (2)

Nunca imaginei que a convivência com minha avó me marcaria de forma tão singular. Foi a partir da compreensão de sua experiência que compreendi toda uma linha racial marcada nesta família, e salta aos olhos o seu constante apagamento, que com este intento textual, pretendo reverter. 

Ao conversar com as primas mais velhas e perceber que muitas tinham poucas memórias da avó Finota, apenas lembranças de broncas e possíveis preferências entre um neto e outro, me dei conta de que vivi muito com minha avó. Nós dormíamos no mesmo quarto, ela me esperava da escola às 11 da noite, já que eu estudava no período noturno. O fato de eu não ter conhecido meu avô, que se tornou uma figura pública, me fez ver a valia daquela mulher que, mesmo em morte, apareceu como esposa. Ela foi uma mulher importante no seio de uma família politizada, suportou a dureza de conviver com uma maioria em que a racionalidade só opera por meio de discussões, e, por vezes, secundarizando a importância do afeto como uma transformação radical nos valores desta sociedade.

A morte de minha avó, mulher racializada, e do meu pai, seu filho, fez de mim um ser outro... 

Quando olho para suas histórias, vejo o que posso fazer e ser de diferente...

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

a escrita e a reconexão


Sempre gostei de escrever. Lembro-me quando tinha sete anos, escrevi uma redação sobre o Natal. Não sei o que escrevi, mas lembro daquilo ter chamado tanta atenção dos professores que minha mãe foi chamada na escola para ser elogiada e não só, para estimular a leitura e a escrita em mim.

Não sei se por isso, ainda aos sete anos, ganhei um diário do meu pai. Ele trabalhava na fábrica Mercedes e voltava para casa de ônibus. Então, quando saiu do trabalho, desceu no centro da cidade e comprou aquele diário. O diário tinha um cadeado dourado com figurinhas e desenhos em uma capa azul, e ali eu escrevia e escrevia coisas da vida e da rotina na escola, como faço agora. O cadeado representava o “segredo”, a escrita pessoal que ninguém deveria acessar além de mim. Gosto de pensar que me respeitaram e que ainda aos sete anos eu poderia ter uma história que quisesse relatar, uma história infantil, mas que fosse minha.

E assim seguiu, todo ano ganhava um novo diário e fui escrevendo e escrevendo até os 14 anos. Guardei todos esses diários e pretendia lê-los neste momento, passados tantos anos e após o falecimento dos meus pais. Talvez uma tentativa de me reconectar com o que eu fui e que já não reconheço. Nos últimos anos, tive um hiato. Às vezes, me lembro de coisas e pergunto se elas realmente aconteceram. Acho que minha memória me engana. Daí me pergunto, afinal, o que foi minha vida, qual o sentido dela? Já li algumas vezes que o trauma subverte o registro da memória, com base nesta evidência individual posso dizer que talvez seja verdade. E por vezes percebo que sem meus pais fiquei sozinha, que tais perguntas sequer fazem sentido agora. Isto porque as nossas conversas eram sempre profundas, mesmo no raso que é o cotidiano.

Basta pensar! Só pessoas com tamanha sensibilidade estimulariam a escrita em mim ainda na infância. Porém, isso também foi parte da história deles. Nos últimos meses, encontrei um caderno dos meus pais. No caderno vi que ambos trocavam mensagens ao sair de casa, isto porque não se encontravam entre seus trabalhos, então era a forma que tinham de dividir a vida. Uma espécie de WhatsApp daquele período, muito menos volátil, ninguém apagava as mensagens, ninguém bloqueava um ao outro, a vida era mais crua e o enfrentamento das chateações das rotinas não era deletável.

Lendo suas mensagens, é interessante perceber o modo como viveram, eram muito especiais em suas pequenezas. O suco de abacate era anotado, meu pai adorava, isto também permaneceu em mim. Eu gosto de revisitar tudo, gosto de ter contato com a saudade e a dor de perceber que eles já não existem, e ter acesso àquela memória que construí com eles, compartilhada, está guardada apenas em mim. Muito privilégio o meu!

Escrever hoje me faz resgatar o que sou e o que fui antes, antes do trauma, e aos poucos ir relembrando as pequenas histórias e tentando encontrar pessoas que tenham também experienciado estas memórias. As fotos me ajudam, felizmente estas eu não perdi, os diários se foram com as mudanças em meio ao luto. Fico triste por não conseguir me rever e por isso também escrevo como forma de dar uma organização aos pensamentos.

Olhando meu entorno e vendo como sempre tive que enfrentar o REAL no seu pior e no seu melhor, percebo o porquê me incomoda tanto o falseamento da realidade. Eu quero saber o que se passa, quero viver efetiva e integralmente a alegria e a tristeza porque sei que só através destas contradições intensas conseguimos amadurecer, dar valor ao que de fato importa e é especial na vida e por isto também escrevo.

Tal como meus pais, eu quero ler, quero saber e me reencontrar e é daí que vem o registro; ele nos mostra como nos construímos e onde e com quem queremos estar. Por isso não me escondo do mundo, porque a vida está aí para todos e por mais clichê que pareça, teremos que enfrentar. E foi por meio dos registros deles que também descobri outros pais que eram confidentes entre si e que bom que puderam partilhar isto juntos.

O caderno foi um presente ao meu pai da empresa Bardella Indústria Mecânicas e é de 1964, ano do golpe, o relato na imagem é de 1976.







segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

O cordão partido

O cordão partido pode ser novamente atado

Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

Bertold Brecht