Ivone Teixeira dos Santos, a “Dona Finota”
Minha avó, uma mulher serena.
A iniciativa de escrever sobre minha avó Ivone foi para mim um desafio, afinal tivemos muitos momentos juntas e depois nos separamos drasticamente. Contar a nossa história pessoal, ainda mais quando nos acostumamos a nunca pensar sobre isso, é também recuperar nosso histórico no passado, um pouco de nós que ficou naquele tempo de convivência.
Uma das minhas avós, Ivone, ou Dona Finota, como ficou conhecida, será a pessoa que resolvi relatar, ampliar esta experiência e fazer desta mulher que passou a vida à sombra, uma mulher histórica. Dona Ivone foi uma mulher racializada, que criou sete filhos e viu alguns deles falecer antes de si. Esta não é uma história inventada; quem inventa é a vida, parafraseando Gabriel García Márquez. Viver é algo bastante notável, há que se pensar sobre a vida, e tudo que a compõe é digno de registro, simplesmente porque nos diz respeito. Assim sendo, Dona Ivone, uma mulher descendente de indígenas e africanos, teve uma história apagada pela violência colonizadora da formação brasileira. Contudo, este texto dará dignidade a esta vida.
Dona Finota era uma avó muito afável; morei com ela até os 19 anos, quando meu pai, por rompimentos familiares, resolveu se afastar. Num Brasil com passado escravocrata, sei pouco sobre seus antepassados, mas quando vivemos juntas, ela era a avó religiosa que acordava às 6 da manhã para fazer suas orações e sempre foi muito querida comigo e com meus irmãos. Recordo-me de alguns dos seus trejeitos: ela nos enchia de coisas para comer e depois reclamava que havíamos comido tudo, numa reclamação estendida a todos da família. Em sua vida, ficou conhecida como a esposa do Salvador dos Santos, meu avô, já que ela sempre esteve ao seu lado nas lutas comunistas que meu avô travou e que deixou marcas em todos que o conheceram. Como consta no artigo publicado no Jornal Andreense Diário do Grande ABC
"Dona Finota (apelido carinhoso de Dona Ivone, dos tempos de Minas), mulher de Salvador, acompanhou-o e o apoiou em todas as atividades desde o nascimento. A matriarca faleceu em Santo André em 30 de abril de 1966." (1)
Contudo, o jornal cometeu dois erros. O primeiro foi que ela não era apenas a esposa do meu avô; ela foi uma mulher que sobreviveu nesta sociedade. Em tempo, foi chamada de louca; quiçá havia mesmo enlouquecido com seu próprio silenciamento forçado. O segundo erro foi o ano de sua morte; ela viveu muitos anos mais, morrendo em 22/02/2009. Viveu para ver o hospital carregar o nome de uma das filhas em sua luta feminista. Na nota do seu falecimento, o jornal noticiou que Santo André perdia uma filha querida.
Dona Ivone era viúva de Salvador dos Santos, pioneiro da Vila Humaitá, participante ativo da igreja do bairro, do clube, da sociedade amigos e nome do centro recreativo e assistencial do bairro. O casal teve sete filhos: Maria José (nome do Hospital da Mulher), Josefina, Lurdes, Joaquim (ex-vereador e presidente da Câmara Municipal, editor do Almanaque de Vereadores, 1ª edição), Salvador Filho (bibliotecário e agente cultural), José e Ana Aparecida. Dona Ivone era natural de Campo Belo, em Minas Gerais, nascida em 8 de junho de 1923. Faleceu quinta-feira e foi sepultada sexta-feira no cemitério de Vila Pires. (2)
Nunca imaginei que a convivência com minha avó me marcaria de forma tão singular. Foi a partir da compreensão de sua experiência que compreendi toda uma linha racial marcada nesta família, e salta aos olhos o seu constante apagamento, que com este intento textual, pretendo reverter.
Ao conversar com as primas mais velhas e perceber que muitas tinham poucas memórias da avó Finota, apenas lembranças de broncas e possíveis preferências entre um neto e outro, me dei conta de que vivi muito com minha avó. Nós dormíamos no mesmo quarto, ela me esperava da escola às 11 da noite, já que eu estudava no período noturno. O fato de eu não ter conhecido meu avô, que se tornou uma figura pública, me fez ver a valia daquela mulher que, mesmo em morte, apareceu como esposa. Ela foi uma mulher importante no seio de uma família politizada, suportou a dureza de conviver com uma maioria em que a racionalidade só opera por meio de discussões, e, por vezes, secundarizando a importância do afeto como uma transformação radical nos valores desta sociedade.
A morte de minha avó, mulher racializada, e do meu pai, seu filho, fez de mim um ser outro...
Quando olho para suas histórias, vejo o que posso fazer e ser de diferente...
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