Hoje faz nove anos que ela se foi.
Ainda lembro de tudo, naquela sequência de dias tristes que me levaram a encontrar o mais profundo sentimento de perda.
Eu já estava psiquicamente debilitada por ter perdido meu pai meses antes.
É estranho perder os pais tão jovem e em tão curto espaço de tempo.
Parece que a vida está a nos perseguir. Mas, depois, lembramos que há muito sofrimento no mundo, e que o nosso não é o único. Ainda assim, nosso sentimento egoísta insiste em acreditar que a dor que carregamos é maior, ou mais única.
Sempre penso em algo que aprendi com a Isildinha nesses anos: "Olha sempre para o lado, olha para baixo, e perceba que há muito mais além de nós neste mundo."
Voltando àquele dia…
lembro que foram incontáveis horas de tristeza contínua e distante.
Mesmo agora, nove anos depois, tento sempre reprimir o choro para seguir e até para escrever.
Aliás, minha mãe sempre dizia: "Quem chora muito envelhece rápido."
Naquele dia, porém, não consegui reprimir o choro. Mas ele demorou a vir. Acho que fiquei em choque por alguns minutos.
Lembro de estar em um café e de ter que sair abruptamente, para a certa confusão da pessoa que me atendia. Como pode alguém pedir um café, pagar, não tomá-lo e ir embora sozinha, apressada, como se tivesse recebido uma notícia ruim?
Sem deixar que ela me alcançasse, fui embora.
Pensei que ela seria incapaz de me entender e posso ter me enganado, às vezes o apoio vem de onde menos esperamos.
Com medo, me escondi em casa, sozinha.
Mandei uma mensagem para o Bruno, que estava na aula.
Não sei por que não fui à aula. Talvez porque já não aguentava o peso daqueles últimos dias. Meu corpo dava sinais disso: alergias inexplicáveis, médicos receitando calmantes, enxergando um sintoma, mas não a dor. Coisas que também aprendi com o sofrimento, o corpo sempre dá alguns sinais.
Foram dias longos.
O Bruno se assustou com minha mensagem e veio logo.
Mas ele também não sabia bem como agir.
O Bruno, meu grande amigo, sempre viveu protegido da vida.
Cresceu numa bolha segura, sem contato com os extremos da existência, fossem eles na euforia ou no luto.
Sorte a dele…
Viveu num certo equilíbrio, até que, depois, começou a descobrir seu verdadeiro eu. Mas essa história bonita, que ele está a tentar construir, ainda precisa ser contada. Talvez um dia eu a escreva, se ele me permitir.
De todo modo, foi ele que esteve ao meu lado naquele momento, junto com a amiga Paula.
A ela, devo muito. Não uma dívida financeira ou uma obrigação.
Mas algo mais profundo: uma dívida de encontros humanos.
Daqueles que nos fazem lembrar que ainda há beleza e humanidade entre as pessoas.
Sentimentos que ultrapassam as pequenezas do cotidiano.
Isso, hoje, é raro.
Andando pelas ruas hoje, observo as pessoas.
Sempre penso que, a cada dia, suportamos menos, ouvimos menos.
Todos querem apenas falar, e falam tanto que nem percebem, sequer enxergam os outros.
O egoísmo exacerbado, como dizia a Izildinha. Sábia, alguém que sabe viver e viver bem.
Foram Bruno e Paula que me acolheram de imediato.
Aos poucos, outros amigos apareceram.
Não todos, claro.
É assim que funciona.
Quando sofremos, as pessoas se afastam.
É natural. Ninguém quer contato com a dor.
É mais fácil fingir, viver na ilusão de uma alegria constante.
Bruno hoje sabe bem disso.
Às vezes, a vida dá reviravoltas muito grandes, e aprendemos a respeitá-la.
A viver com cautela. Nunca sabemos o que virá.
Este texto está confuso, eu sei.
Mas é sempre assim quando escrevo sobre esse período.
Como sempre digo, o trauma cria um hiato na memória.
E, ao escrever, tento organizar esse vazio.
Naquele momento minha consciência ficou desprotegida, e então deixei de conseguir produzir significado para o que vivi e para o para o que viveria anos depois, me tornei distímica.
Até hoje, tento reconstruí-lo. Produzir sentido para o que deixou de ter.
No choque ou sofremos, ou assimilamos. Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Talvez por isso, tudo ainda pareça tão real.
Parece que todos os anos preciso voltar àquele dia, reorganizá-lo.
Naquele 13 de novembro, me escondi.
Aos poucos, fui saindo.
Não foi fácil. Demorou anos.
Alguns talvez não entendam o que foi isso.
Tudo bem. Não os condeno.
É sempre mais fácil lidar com a superfície. O profundo dói demais.
Mas ainda existia vida dentro de mim.
Fui capaz de agradecer ao médico que, com dignidade, continuou cuidando da minha mãe.
Ele nem sequer trabalhava naquele hospital.
Um gesto nobre, algo que apenas os médicos verdadeiramente humanos são capazes de fazer.
Lembro de ter ido até ele, um mês depois, apenas para agradecer. Ele chorou…
Lembro também da culpa que o professor Sinclair carregava.
Foi ele quem me incentivou a estudar fora.
E, como toda escolha implica renúncias, perdi os últimos momentos com minha mãe.
Quem poderia imaginar?
Hoje estamos aqui; amanhã, talvez não.
Fiz questão de dizer a ele (in memoriam) que aquela culpa não era dele.
Nem minha. Nem de ninguém.
A vida não é uma linha reta.
Nos últimos anos, sempre que essa data chegava, eu fazia um pequeno ritual:
levava uma flor ao rio.
Um gesto de despedida contínua.
Mas, recentemente, parei.
Percebi que, apesar da distância e do fim, ainda converso em consciência com minha mãe.
E, também, com meu pai, embora ele, sempre calado, apenas me observe.
Hoje escrevi duas páginas em dez minutos.
A depressão, por vezes, é criativa.
Mas, mais do que isso, quando reencontro minha dor, também reencontro minha força.
Percebo que tanta coisa é banal e eu não quero dar importância.
E aprendo a viver melhor, a dar valor ao que realmente importa.
Como dizia Belchior:
“Amar e mudar as coisas me interessam mais.”
Por isso, este relato se chama "Quando se aprende muito cedo a abrir as asas da alma."
Quando alguns laços se rompem, precisamos nos abrir de novo e encontrar outros laços.
Muitos não fazem isso.
Porque requer coragem.