sexta-feira, 16 de junho de 2023

Retratos de um Tempo: heranças operárias e reflexões no ABC Paulista


Ontem, meu primo, vivendo a tristeza do seu luto e das mudanças que a vida tristemente impõe, me enviou esta foto. Nela, podemos ver meu pai (in memoriam) e minha tia, que faleceu recentemente. Mesmo eu ainda não tendo nascido quando este retrato foi feito, conheço as histórias que envolvem esta foto e muitas outras. 




Meu pai e minha tia eram amigos. Foi minha tia que apresentou meu pai à minha mãe. Todos trabalharam juntos em uma fábrica no ABC e depois meus pais casaram-se e essas pessoas continuaram sendo amigas ao longo do tempo... 

Eu acho incrível como as fotos antigas, diferentemente das fotos atuais, sempre parecem nos remeter a uma história muito mais ampla. Ou talvez seja eu querendo contrariar a realidade atual, onde o "EU" prevalece sobre qualquer outra coisa, e esteja querendo ver na foto o histórico existente naquele período. A exemplo das teorias, ninguém mais discute a teoria em si, mas sim o "EU" na teoria... e tudo se esvai porque já não existe um sentido social e coletivo do teórico, mas o sentido individual de análise que é o que parece importar em tudo. 

Numa espécie de movimento contrário, deixo de olhar o "EU" para observar o entorno que esta foto poderia me oferecer... O que estariam eles pensando? Quem fez esta foto? Quais eram seus sonhos em um estado de São Paulo já industrializado no ABC, onde nasci? Quase todos os que viveram naquele período possuem alguma relação com as fábricas. 

E é por isso que meu pai, minha tia e seus amigos possuem um aspecto de estudantes e jovens trabalhadores...uma história comum naquele contexto e com um comportamento específico que caracteriza o sentido de suas vidas, como pertencentes a uma classe e imprimindo as atividades que exerciam. 

Sem esquecer de mim, porque, obviamente, mesmo sendo produtos sociais, também existimos individualmente... Quando olho esses olhos ainda em uma foto em preto e branco, também me vejo um pouco neles. E é isso que nos dói no momento de luto: a gente perde aquele olhar que parece ser a única coisa verdadeira nesse mundo recheado de mentiras e falsas aparências... O fato é que, ao olhar a foto, me vejo nessas pessoas e sei que suas formas de ser e viver reproduziram em nós, do ABC Paulista, efeitos sociais, simbólicos, afetivos e econômicos das suas relações subjetivas com a condição operária, e esta foi a maior herança material que recebemos: o olhar sobre o mundo pelo viés do trabalho, da repetição e da organização dos muitos iguais. 

Lembro do meu pai ter ficado feliz quando o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) passou a admitir garotas, porque agora a filha dele, que ele considerava muito inteligente, poderia seguir seu caminho e se tornar também metalúrgica, pois ali havia um ônibus que levava e buscava, o salário era bom e pago corretamente... lá a gente tem direitos! (dizia ele). Nunca consegui concretizar esse sonho do meu pai, até porque essa realidade já não existe. O nosso referencial de sucesso não era externo, mas estava baseado na realidade e somente na realidade, ou seja, aquilo que saciaria, de forma simples, as nossas necessidades básicas. 

Eu gosto da análise sociológica que diz que normalmente os pais desejam que seus filhos alcancem posições sociais melhores do que as suas. Entre os chamados "operários", essa herança pouco ascendente não era necessariamente um problema; ao contrário, a aceitação dessa continuidade era motivo de orgulho. 

Os metalúrgicos do ABC daquela época são muito orgulhosos de si e de sua história, e por isso o estudo profissional era o nosso caminho... e é também por isso que até hoje sei usar um paquímetro, graças aos ensinamentos da minha mãe. Porque isto era tudo que precisávamos na vida, conhecer profundamente os nossos futuros instrumentos de trabalho e ser consciente da nossa condição no mundo... a consciência da repetição, do anonimato individual na esfera pública, do aparecer nos livros de história sendo só coletivo (Os metalúrgicos do ABC) da submissão e da resistência…e foi assim que seguimos.

Elaine Santos 


terça-feira, 13 de junho de 2023

13 de Junho, dez anos depois

O texto a seguir foi escrito em junho de 2013, no auge das manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Publico este relato em meu blog com o intuito de manter viva a percepção daquele momento político e social brasileiro.

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Acabamos de chegar da manifestação na Avenida Paulista e retomamos o cenário que presenciamos exatamente há uma semana, quando todos estavam lutando por um objetivo comum: a redução da tarifa. E não, não é somente por 20 centavos; na verdade, é contra a violência que o capital promove diariamente. Tomamos bombas, tivemos enfrentamentos com a tropa, mas vimos uma juventude disposta a lutar.

Nas últimas manifestações, dada a comoção nacional ante os abusos da força policial, o que notamos foi uma mudança de paradigma, momento no qual a direita se colocou e claramente se apropriou de um senso comum, enfatizando uma luta ufanista, um nacionalismo exacerbado. O que vimos hoje foi um ato cívico fascista disputando pautas diversas e conflitantes. Dentre elas, o fim da corrupção e a redução de impostos, sem considerar as bases que conduzem a tais contradições e desigualdades. Por outro lado, partidos políticos com histórico de luta (ainda que possuam limitações para o que pensamos e queremos de uma esquerda) foram hostilizados, tiveram bandeiras queimadas e foram expulsos de um ato que deveria trazer à baila um objetivo comum e que agora oportuniza apenas a universalização de interesses particulares, os interesses de uma extrema direita em sua retomada.

Por fim, após a expulsão, o que acompanhamos foi um movimento da "esquerda" em uma tentativa de unificação combativa a este pujante levante de uma juventude despolitizada e dispersa, que aparenta reproduzir um discurso moralizante, que se indigna, mas não apregoa mudanças reais e efetivas.

Não há pressa política e nem espaço para isto na imediaticidade. Mas, para aqueles que anseiam uma transformação nas bases sociais, se faz urgente repensar suas ações e posições diante de tudo que estamos vivenciando, sem distanciamentos (teoria e prática), retomando as questões concretas e buscando respostas na história.

Caroline Rodrigues  
Elaine C. S. dos Santos  
Flavia Bigai