Bolsonaro é tratado, de modo quase unânime, como adversário. Ele
próprio, diariamente, ao contrário, se aplica em ser inimigo.
Um transgressor de todos os limites de forma e conteúdo, feito um
marginal, um delinquente. Um conquistador, chefe de tropa colonial, a destruir
os quilombos e aldeias indígenas. Tem o estado do seu lado, polícias, exército,
justiça. Persegue, prende, condena com e sem causa (mata, ainda que não
diretamente).[1]
Chefe de tropa do exército de ocupação, vai inchando o estado de exceção.[2]
Fala sem nojo e pejo as coisas mais terríveis e desencontradas, diz e desdiz,
faz barbaridades enquanto afirma fazer e não faz, com seu falar claudicante de
caipira da zona atibaiense, espraiado por toda a baixada santista e Vale do
Ribeira, zona produtiva e comercial, entre os séculos XVI e XVII, que abastecia
de alimentos o Pernambuco colonial.
Um chefe huno, chefe de guerra, tratado por todo o público oficial e
oficioso com desdém cerimonioso, como se fora amigo involuntário e tolerado.
Amigo não, conviva do festim do capital, assentado nas quatro pernas de seu
golpe dentro do golpe. Como? Uma fatalidade histórica.
Sim, afirmamos, golpe, movimento brusco e demolidor de relações
sociais, uma revolução. Seus atores a proclamam. Os arquiduques milicianos e
seu rei de guerra, capitão generalíssimo, devoto do astrólogo filosofante. O Grande
Moro, juiz togado maior da mesa inquisitorial, maior mesmo que os juízes
funcionários supremos, do tribunal máximo. Homem treinado nos escritórios
gringos, elevado de caipira da província periférica ao doutorado em leis
menores, sempre listas para atropelar os códigos oficiais, para o reinado das
artes excepcionais. Os maiorais da tropa generalícia reservista, inativa,
vetustos líderes já sem serventia, de nativos e gentios, lugares-tenente dos
oficiais com mando ativo. Por fim, a tropilha obesa da nobreza argentária dos
legisladores congressuais, de seus vários clubes poderosos – da bala, bola e da
bula, da bíblia e dos bois, dos basbaques.
Quatro pés da mesa a comandar a revolução dos poderosos. Pés
imperfeitos, a trançarem-se como se indecisos, cada um deles às voltas com seus
problemas, seus dilemas existenciais. Entre eles há, porém, certa hierarquia,
seja na condução da carruagem da revolução, ou das funções a desempenhar. Os
passos trôpegos de cada uma delas enchem as páginas dos jornais e revistas, dos
noticiários televisivos. Tropeçam, escorregam, se trançam, caem de joelhos
sobre a grama do planalto ou o cimento polido e acarpetado dos palácios e
ministérios. Se contradizem, disputam, entre si, a supremacia, mas seguem
decididos o curso de sua obra transformadora.
Não há Brasil no cubículo onde se assentam ou nas cavernas onde
revoam pequenos mamíferos noturnos. Seus horizontes não vão além do cerrado
seco, esturricado, desértico. O figurante exemplar não concebe a vastidão do
mundo, ou mesmo do país continental que lhe coube nascer. Odeia tudo o que vai
além de suas ideias pré-concebidas, a bailar em torno dos grandes poderes. De
modo que hoje podem ser assim, logo mais outras e assim por diante. Feito um
colar de contas de diferentes cores. Sempre haverá outra e outra a servir para
uma resposta. Nenhuma tem a mínima noção do que sejam as contas nacionais, o
censo, o vasculhar do espaço terreno pelos satélites, o efeito estufa, a
importância do cerrado ou da Amazônia, a estupidificacão nacional por via do
porte quase irrestrito de armas e outras idiotices racistas, homofóbicas, a
assediar a população estupefata com o jorro intermitente de seu vomitório, com
as ameaças de perda de liberdades.
A sua noção de soberania não vai além da geografia, alienada para
todo o sempre à bandeira gringa e seu boçal presidente, aos quais diariamente deve
bater continência nas manhãs e tardinhas planaltinas. Ele chegou do mundo
obscuro dos porões, das entranhas do Condor, mal tolera o sol, o carnaval, o ir
e vir sem método dos civis, a incerta variedade do viver em sociedade. Mal
tolera as leis, o congresso, mal sabe da economia do mundo e da política dela
emergente, quanto mais a da pátria. Mal sabe que a economia política neoliberal
é uma glorificação religiosa da morte, a negação do sentido original da
disciplina, o da conquista da riqueza para a glória da nação, soberana sobre
tudo e todos, sobre todo o planeta. A financeirização potenciada pela taxa nacional
colossal de monopolização da estrutura econômica (e dos negócios e bancos, em
particular), impõe à nação um veto criminoso à industrialização soberana (e à
industrialização em geral) e à venda da força de trabalho, uma espécie de
lock-out patronal contra a democracia, restringindo ainda mais os limites
democráticos do regime do salariato, expandindo-se à ditadura de fato do grande
capital financeiro. Dos trabalhadores, destituídos da legislação democrática,
das leis da carta protetora que lhes garantia condições menos miseráveis de
venda da sua força de trabalho, se exige serem transformados em objeto de ainda
maior superexploração, para gáudio do capital, assim reconduzidos a uma
escravidão salarial ainda mais terrível do que a vigente sob a contrarrevolução
até a abertura democrática. O capitalismo da miséria se miserabiliza
exponencialmente.
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Fonte - google |
Para ele o Brasil será isso, um protetorado wasp, uma Irlanda evangélica montada no cavalo dócil dos cristãos católicos e outras religiões não cristãs, de etnias cristianizadas à força, expressão da desumanidade cristã exclusiva para o capital, da floresta tropical devastada, da miséria escravocrata a servir os delinquentes de todas as castas congressuais.[3]
Escravo da sua pequenez, no seu espelho vendo-se gigante imbatível,
nos arrasta ao cadafalso da história, como vítimas, para susto e escárnio dos
que navegam a velas enfunadas rumo ao futuro, em sentido contrário ao nosso.
Assim damos adeus definitivo ao nosso antigo futuro glorioso, antevisto no hino
nacional da República. Deixamos de ser simplesmente o que éramos para não
sermos mais nada. Retornamos ao nosso novo nada original, entregues à nossa
nova humanidade penta secular, pronta para uma nova jornada. Escravos, assim,
de nossa abismal ignorância de si, de nossas fantásticas possibilidades,
enquanto livres, soberanos, que nos arrasta pontual, metódica e cronicamente à
rica miséria de seus potentados, à miséria miserável de seus trabalhadores, de
seu povo.
Porta-se como um delegado de costumes enviado para impor ordem, de
rebenque em punho, pronto a dissolver a balbúrdia e as ideias erradas, a
trancafiar-nos, a nos colocar de castigo no armário e nos deixar cheios de medo
e terror. É personagem funcional aos desígnios neocoloniais das burguesias
nativas, alegres e emocionadas (às lágrimas quando da aprovação da primeira
etapa da reforma da Previdência) a proceder ao desmanche da nação,
transformando-a em novo protetorado norte-americano, uma nova Irlanda
pentecostal gringa, a empurrar a nação ao nada de sua nova e radical transição
neocolonial, diluída em ácido sulfúrico.[4]
Estamos diante de um inimigo que se delicia em declarar-se devoto de
interesses minoritários e de um universo ideológico colonial, antidemocrático,
escravagista, portanto antinacional, antipopular, anti-assalariados em geral. Inimigo
vassalo de potência estrangeira em declínio e estertorando sob a férula de um
celerado de ultradireita decidido a reverter o rumo da história por meio de
estratégia geopolítica de guerra contra as potências emergentes.[5]
É o personagem providencial do capital, contra o qual se deve construir a força
social votada à sua derrota. Deve ser tratado como tal e não como o adversário
que amanhã será derrotado em improváveis futuras eleições a serem ganhas pelas
mesmas forças cujos equívocos teórico-práticos nos conduziram a esta revolução
dentro da contrarrevolução de 1964, da qual ainda não saímos e da qual eles não
tiveram nem tem ainda consciência, supondo até agora, desde 1985, havermos entrado
definitivamente na democracia.
Ele recém chegou do baixo Vale, do território neocolonial da miséria
do Vale do Ribeira. Seu presente é nosso passado. Ele não aspira regredir à
colônia, simplesmente quer voltar para casa.
O Brasil de 1500 acabou. O novo Brasil, o da segunda independência,
radical e popular, começa a sua marcha hesitante. Precisa ocupar as ruas, as
revistas e os livros, os corações e mentes dos humilhados e ofendidos pela nova
ordem. A opção neandertal é suicida. Decididos a não acompanhar os seus
parentes sapiens-sapiens, se deixaram ficar tranquilamente em suas cavernas,
acompanhados de suas famílias. Foram encontrados recentemente pelos
mergulhadores arqueoólogos-espeleólogos, nas grutas profundas, dezenas de
metros sob o mar, nas encostas mediterrâneas, juntinhos em sua morte coletiva.
São Paulo, 27 de julho de 2019.
Paulo Alves de Lima Filho
(Coordenador do IBEC; Comunistas pela Unidade da classe trabalhadora)
Sem nos esquecer de Marielle e das
estatísticas policiais.
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